domingo, 31 de outubro de 2010

O Pacto

Ai que essa paixão ainda acaba comigo, pensou Rosa vendo João passar. Toda manhã, o dia nem clareara de todo e já ia ele com a rede para o mar. Gostava dele desde menina. Uma única vez olhou para ela. Foi quando usou aquele vestido estampado, danado de bonito, que a patroa lhe dera. Depois disso, nunca mais. Passava e era como se ela não existisse. Não existia para ele. Até tinha tentado namorar Matheus, rapaz cheio de boas intenções. Volta e meia falava em casamento, pensava em subir na vida, ter negócio próprio. Mas aquele cheiro de cigarro com maresia lhe dava engulhos. Desistiu. Preferia ficar sozinha o resto da vida se não fosse para ficar com João. Sonhava no futuro, velhinha, pedindo abrigo no asilo das freiras. Ajudaria na limpeza, lavaria a roupa, mesmo já fraca e cansada, a noite puxaria a ladainha com elas. No final, na hora do último suspiro talvez João viesse, por caridade, se despedir dela. Outras vezes se imaginava ao lado de João, casada, cheia de filhos, os meninos correndo pela casa. Ela cozinhando o peixe trazido por ele. A vida correndo mansamente. Sonhava assim, sonho de amor ou de morte, sempre com João. Nem sabe o que seria de sua vida se não fosse Dora, sua melhor amiga e confidente. Verdade que vez em quando até ela se cansava de suas queixas de amor, chamava-a de cabeça de vento. -Vai buscar outro rumo na vida Rosinha. Onde já se viu? Falava assim se referindo aos seus sonhos, achando tudo bobagem, maluquice. Não se importava. Sabia que esse azedume passava e ela voltaria a ouvir e enxugar suas lágrimas, lhe confortando. Um dia o menino de Dora adoeceu e Rosa foi com ela até a casa da rezadeira. Conversa vai, conversa vem, Dona Noca olhou meio de lado e falou: -Que diacho de tristeza é essa menina? Aposto que é mal de amor. Rosa concordou. Era. Amor mais sem jeito, sem esperança. -Vai à beira do mar na primeira noite de lua cheia e chama pela sereia. Pede com fé que ela ajuda, promete um espelho bem bonito em troca dela te dar o moço. Mas, cuidado, nunca tu pode dizer que não quer mais, que ela vem e carrega com ele. Rosa exultou. Não, nunca que não ia querer mais. Se desde menina que gostava, esperava. Já nem esperava mais... Fez o pacto. Implorou a sereia que lhe desse João. Ele a seus pés, numa paixão desvairada pra compensar todo o sofrimento já vivido. Três meses depois uma festa de arromba na praia. Rosa botou o vestido estampado, aquele que tinha conseguido o único olhar de João. Chegou, a festa ia alta. Tomou coragem e um gole grande de aguardente e começou a dançar. João tocava violão quando olhou na sua direção. Como é que não tinha prestado atenção ainda naquela cabocla? Bonitinha que só ela. Tirou-a pra dançar. Dançaram a noite toda e a partir desse dia se pegaram num chamego de não acabar mais. O tempo passando. João começou a ficar ciumento, aparecia a qualquer hora do dia ou da noite. Nem queria mais ir pescar, só grudado em Rosa. Seguia ela pelas ruas, proibiu um tudo. Não tinha amigas, nada de festas, implicava com as roupas. O vestido estampado foi o primeiro da proibição, chamativo demais, segundo ele. Cismou com um vizinho. Começaram as brigas, ele foi ficando violento. Veio o primeiro tapa. Chorou, pediu perdão. Mas, depois veio outro e logo a cada cena de ciúme Rosa apanhava de dar dó, já sem nenhum pedido de desculpas. Uma noite no meio do choro ela gritou: vai-te embora que não te quero mais. De manhãzinha João saiu com a rede. Nessa noite não voltou do mar.

Um comentário:

Elizabeth disse...

Bonito...triste... misterioso,como tudo que envolve o mar....