sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Conto da Lua Nova

Abriu o guarda-louça da sala e pegou a velha caneca de cobre. Toda lua nova repetia o ritual que sua mãe, sua avó, a avó de sua avó já tinha feito.
Caminhava até o riacho. Enquanto andava ia se concentrando, esquecendo os dissabores, as preocupações do dia.
Enchia a caneca com a água do rio e voltava.
No centro do terreiro vertia a água na pequena bacia de flandres, sob a luz da lua nova fininha no céu.
Aí então acontecia. Parecia que estava mergulhando num túnel em alta velocidade.
Um caleidoscópio na cabeça, imagens, cores. Até que ia parar num sonho ou em outra dimensão, no meio da floresta. Aproximava-se do poço sagrado e ali tinha as revelações.
Era dessa forma que obtinha as receitas de ervas que utilizava na cura de quase todas as mazelas, do corpo e da alma.
Seguia com seu ritual, suas fórmulas, seus sonhos. Não questionava, apenas fazia o que tinha que ser feito.
Uma vez o padre lá da Vila veio até sua casa. Entrou , conversou, cercou, fez perguntas. Ela se fez de desentendida, a vida e a solidão já lhe tinham ensinado que o silêncio era sua melhor, e mais conveniente, companhia.  Ele desistiu do interrogatório, viu logo que não conseguiria arrancar nenhuma confissão daquela estranha e silenciosa mulher que, a seu modo, parecia ser feliz. Diria às beatas que tudo não passava de maledicências. Tomou o café e foi embora, deixando-a em paz.
Tempos depois veio o outro. Bonito, perfumado, vestido como só havia visto nas revistas. Dizia ser médico e ter ouvido falar de suas receitas. Conversou muito e até conseguiu fazer com ela também falasse de si.
A vida ficou melhor, parecia ter mais sentido, as coisas que ele dizia também faziam sentido. Perguntou se ela via sentido no que fazia...
Voltou outras vezes.
Chegou mesmo a falhar numa noite de lua nova em que ele apareceu pra conversar.
Sem explicação, nem despedida, não voltou.
Ficou esperando. Veio a lua, e mais uma, ele não.
Seguiu sua sina. A caneca de cobre, o mergulho no túnel, o poço, as fórmulas.
Nunca mais foi igual. Os dias perderam a luminosidade de antes ou seria ela que tinha escurecido por dentro? Coisa estranha que não conseguia entender nem explicar.
Agora se perguntava o porquê do ritual, pra quê e, pior, a sombra da dúvida cobria seus passos enquanto seguia na direção do rio.
Antes ele nunca tivesse vindo.

Um comentário:

Elizabeth disse...

Lindo o texto..
"Os dias perderam a luminosidade de antes ou seria ela que tinha escurecido por dentro?" Muito bacana.. adorei.